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A Banca


Despreocupado, o menino descia a ladeira, sem nenhum tipo de pensamento na cabeça que fosse mais sério ou importante do que o fugaz desejo de ser plenamente feliz. Enquanto saltava os degraus desproporcionais da calçada, avistou, ao longe, na esquina, algo como a miragem do prazer definitivo: a banca de jornal.

Apressou o passo, ou melhor, partiu em disparada, como se antecipasse alguma coisa de ruim. Chegou ofegante ao reduto sagrado, templo maior dos colecionadores de Histórias em Quadrinhos, no exato instante em que o jornaleiro estava para fechar seu diminuto e enferrujado estabelecimento comercial. O garoto não se fez de rogado e bradou: “Opa! Moço, não fecha ainda! Vim pegar meu gibi do Capitão Ajax!”

O jornaleiro, um velhinho simpático, conhecido de todos no bairro há anos, olhou por cima de seus óculos, e com um sorriso tristonho nos lábios respondeu ao guri: “Ah, sim, aquela revistinha que você compra todo mês, não é? Ela está bem aqui, tome!” – o menino, eufórico, pegou o exemplar e começou a folheá-lo avidamente.

Com toda a certeza, não há cientista ou psiquiatra no mundo que possa descrever, sequer compreender, o que se passa na cabeça de um garoto naquele átimo de segundo entre o folhear de uma página para outra; mas o velhinho parecia entender, ao menos, o que se dava no pequeno e pulsante coraçãozinho do menino (talvez, devido, aos longos e cansativos anos de vida que lhe deram tantas experiências e uma sapiência inigualável). E comentou: “Será que o Capitão Ajax vai se dar bem desta vez?”

O rapazinho olhou para o ancião e disse desconsolado: “Ah... duvido! Ele até pode derrotar o vilão, mas, no final, a mocinha sempre pensa mal do Capitão e ele acaba sozinho...” – em seguida, fez menção de pegar o dinheiro no bolso do calção, mas o bom velhinho disse: “Vamos combinar uma coisa: vá pra sua casa e leia a revista. Se o herói ficar com a mocinha no final da história, você volta aqui e me paga. Mas se a má sorte do Capitão Ajax continuar, você só retorna o mês que vem pra pegar a nova edição. E ficamos assim. Você só me paga pela história em que haja um final feliz, tá bom?” – o menino não entendeu muito bem, mas concordou. E foi para casa ler a nova história de seu herói favorito.

Mal o dia raiou, e o garotinho já descia a ladeira com o seu exemplar do Capitão Ajax na mão. Mais uma vez, saltando por sobre os buracos e degraus da calçada com uma agilidade e destreza dignas dos maiores super-heróis. Mas o que chamava a atenção de todos na rua eram os gritos de alegria do pirralho: “Ele se deu bem! Ele ficou com a mocinha no final!” – porém, à medida que se aproximava de seu destino, notou um movimento estranho na esquina em que deveria estar a banca. 

Ao chegar perto, viu que a mesma não se encontrava mais ali, e, que em seu lugar estavam trabalhadores da prefeitura destruindo a calçada com suas britadeiras. Na parede do bar da esquina, uma placa com os dizeres: "Em breve: passarela – Mais uma obra da prefeitura para o conforto de sua população". Durante o mês que se seguiu, o desesperado menino procurou seu amigo jornaleiro por todas as esquinas do bairro, até que, finalmente, ficou sabendo por um vizinho, que o jornaleiro falecera.

A notícia foi um choque para o pequeno colecionador, que se trancou no quarto para lamentar e praguejar: “Que adianta o progresso se os sonhos morrem?” – durante horas ele ficou ali, desconsolado, olhando para o teto, mas, estranhamente, sem vontade de chorar. Assim que o dia começou a nascer e os raios fulgurantes da manhã entraram por suas cortinas tremulantes devido à brisa matinal, alguma coisa o impeliu a folhear de novo seu exemplar do Capitão Ajax. Só que, então, ele se concentrou na última página, na parte do expediente e na imagem do herói que ele não havia reparado antes, tão eufórico que havia ficado com o final feliz da história.

Na tal imagem, o balão do personagem dizia: “Meu amigo, este é o último número da revista. Infelizmente, as vendas caíram tanto que ficou inviável continuar publicando o gibi. Me despeço com o coração apertado, pois sei que você se manteve fiel ao meu lado na busca da verdade e da justiça, sempre torcendo por mim. Apesar do fim de minhas aventuras, espero ficar eternamente presente em seu coração, inspirando você a fazer o que é certo, levando felicidade a todos a sua volta. Fica com Deus, e um forte abraço do seu chapa, o Capitão Ajax!”

Enfim, as lágrimas chegaram e, com uma maturidade pouco comum para alguém da sua idade, o garoto compreendeu que a felicidade não pode ser comprada, tampouco ser transferida para objetos, pessoas ou lugares – pois uma hora tudo isso poderá ser tomado de você.
Exceto os sonhos...

© Copyright Roberto Guedes. Todos os direitos reservados.

Esta minha crônica foi publicada originalmente no site Bigorna, dos amigos Eloyr Pacheco e Humberto Yashima, em 5 de novembro de 2007. Dedico-a mais uma vez, às mentes sonhadoras e a todos que possuem um coração de herói batendo dentro do peito.

Comentários

Anônimo disse…
Pô Guedes.
Isto lá é hora de deixar a gente triste? O velhinho morre e a revista é cancelada? Que destino terrível teve o gurizinho...
Andre Bufrem
Wendell disse…
Chapa, essa crônica sua é muito importante pra mim, de verdade!

Felizmente saiu no Brasil a edição oficial da sublime série Decálogo, do mestre Kieslowski, e não é que sempre penso que você tem a narrativa muito parecida com a dele.

Arte intimista, reflexiva, que trabalha conceitos metafísicos e filosóficos sem ser hermético, carregando o leitor para este universo de forma concisa.

Além disso, nas palavras, o que vemos é nada menos que alma humana: alegria, tristeza, ética, solidão, amor, coragem... tudo isto num jogo maravilhoso de causalidade onde a evocação Dele é feita com tranqüilidade e beleza.

Cara, como não sei escrever como você (rs), então vou usar algumas palavras do gênio Kieslowski, sobre Decálogo, para tentar lhe demonstrar de forma mais precisa o que vejo nos seus textos.

“Há seis mil anos, esses mandamentos têm sido inquestionavelmente corretos. Porém, nós os desobedecemos todos os dias. As pessoas sentem que a vida tem algo de errado. Há uma espécie de atmosfera que faz com que as pessoas busquem outros valores. Elas querem contemplar as questões básicas da vida e, provavelmente, é essa a verdadeira razão para contar essas histórias.”

“Desde meus primeiros filmes, sempre tenho contado a história do homem que, por achar difícil se orientar neste mundo, não sabe como viver.”

Manifesta, exulta e vai! :D

Mestre, um grande abraço do seu fã,

Wendell
Renato disse…
O jornaleiro já devia saber que ia morrer, por isso fez a proposta ao guri de ele só pagar pelas histórias com final feliz. Daí a moral da história: a de que a felicidade não pode ser comprada, e nem transferida para objetos e pessoas.

Simplesmente maravilhoso, senhor Roberto Guedes!
Regina Guedes disse…
Concordo que o jornaleiro sabia que ia morrer, e acrescento: ele quis ensinar ao menino a não cometer os mesmos erros que ele o fez na vida. É por isso que envelhecemos... para adquirir experiência e repassá-la aos mais jovens.
Parabéns, Beto!
Sandro Marcelo disse…
Sensacional, Guedes... uma história emocionante, cheia de nuances de sonhos e esperanças, com um final igualmente emocionante e esperançoso, afinal o jornaleiro morreu, mas o garoto tinha ali consigo, para sempre o Capitão Ajax com o final feliz! Um sonho que não morre mas se perpetua e uma lembrança incomensurável para o garoto! PArabéns, texto maravilhoso!
Anderson ANDF disse…
Me lembrou do velhinho que tinha uma banca e vendia gibis usados por 50 centavos. Sumiu e nunca mais o vi.
Adão de Lima Jr disse…
Muito legal seu Conto. Manter vivo o sonho de uma criança é sempre inspirador.

Mas gostaria de observar algo como crítica construtiva, com a sua permissão.

Ficou meio confusa a parte onde o velho propõe:
"Se o final for feliz, você volta aqui e me paga. Do contrário, retorna no mês seguinte e pega a nova edição." (apenas simplifiquei a frase).
Se a moral da história é:
"o garoto compreendeu que A Felicidade Não Pode Ser Comprada, tampouco transferida para objetos, pessoas ou lugares – pois uma hora tudo isso poderá ser tomado de você."
Caso o velho não tivesse morrido, o menino teria pago pela felicidade do herói.

Penso que a proposta do velho devia ter sido:
"Se o final Não for feliz para o herói, você volta aqui e me paga. Se for um final feliz, volte no mês que vem."

Uma coisa é certa: Não há preço que pague para mantermos nossos sonhos vivos!

Abraço!