Há cerca de um mês, no máximo, eu cheguei a trocar algumas breves palavras com Tony Isabella, veterano roteirista de quadrinhos norte-americano, cuja carreira teve uma maior projeção – tanto lá fora quanto aqui – durante os anos 1970. Isabella nunca fez parte do rol de autores mais reverenciados pelos leitores, como alguns de seus contemporâneos da Era de Bronze, tais quais Steve Englehart, Marv Wolfman, Gerry Conway e Frank Miller, mas é possuidor de uma folha de serviços nada inexpressiva.
Criou ou escreveu títulos bem conhecidos, entre eles Os Campeões, Capitão América, Luke Cage, Motoqueiro Fantasma e diversas HQs para os magazines de horror da Marvel. Boa parte desse material foi republicada no Brasil, em revistas das editoras Bloch e Abril. Ele também criou o primeiro super-herói negro de maior relevância para a DC Comics: Jefferson Pierce, o Raio Negro. Quem acompanhava os formatinhos da EBAL irá se lembrar dele (e quem não viu, corra logo pro sebo mais próximo de sua casa).
Ao estudar a carreira de Isabella, e também durante esse breve bate-papo, pude perceber que temos algumas opiniões em comum. Uma delas, diz respeito ao estranho arco de histórias do Motoqueiro Fantasma em que o herói do crânio flamejante é socorrido por alguém que deveria ser Jesus Cristo, durante uma batalha contra Satã.
Qual não foi minha surpresa, ao constatar, tempos depois, que essa HQ sofreu forte imposição de um certo editor, sendo alterada e reescrita pelo próprio à revelia de Isabella. Este não diz quem é o tal editor, mas comentou que no roteiro original, Johnny Blaze tornava-se um cristão renascido, após aceitar Jesus como seu único e soberano salvador. Quanto ao príncipe das trevas... bem, ele voltava com o rabo entre as pernas pras profundezas do inferno. Mas nada disso aconteceu na versão publicada.
“Considero o que ele fez, um dos três maiores atos de arrogância que já vi um editor cometer!”, indignou-se Isabella. Olhando nos créditos, constata-se que, na ocasião, o editor era Marv Wolfman, não implicando, todavia, que a decisão tenha partido dele. Tampouco não sei dizer quais seriam os outros dois atos arrogantes, mas se pouco preconceito é bobagem, Isabella veria mais uma de suas idéias sofrer outro abuso e deturpação de princípios.
Fiquei a par disso, ao lhe perguntar se a concepção de um grupo de heróis tão esdrúxulo quanto os Campeões teria sido mesmo dele, e o roteirista me garantiu que não: “Deus te abençoe, meu amigo! Meu conceito original para os Campeões da Marvel era o de dois amigos viajantes: Homem de Gelo e Anjo. Eu achava – e ainda acho – que uma dupla formada por um sujeito classe-média e um garoto rico, ao estilo do seriado televisivo Route 66, proporcionaria situações divertidas. Mas os editores Len Wein e Marv Wolfman queriam um grupo de heróis mais tradicional e impuseram várias regras absurdas, como a de incluir toda uma equipe restante. Definitivamente, eu não compartilho do mesmo carinho dos fãs por essa série.”
Os leitores veteranos vão lembrar que a série Os Campeões foi parcialmente republicada no Brasil a partir de 1979, nas páginas de Heróis da TV. Uma equipe formada inicialmente por Motoqueiro Fantasma, Anjo, Homem de Gelo, Viúva Negra e Hércules, totalmente sem química e nenhuma motivação real que justificasse sua união. A série durou apenas 17 números, mas como muita coisa vira “cult” sem uma aparente explicação, ainda hoje os leitores lembram com carinho de suas aventuras. Por aqui, os editores brasucas pularam boa parte das edições – aquelas desenhadas por Don Heck e Bob Hall, por exemplo –, concentrando-se nas aventuras com arte de John Byrne, então, um iniciante pra lá de promissor.
Admito que fiquei admirado (ou nem tanto, já que hoje sei muito bem como as coisas por vezes se desenrolam nos corredores das redações), de como Wein e Wolfman podem ter sido arbitrários. Justo eles, que sofreram um bocado de perseguição em seus primeiros dias no staff da DC por causa do discurso racial que imprimiram em “A batalha de Jericó” – HQ da Turma Titã brecada na porta da gráfica por Carmine Infantino, para, em seguida, ser parcialmente reescrita (e redesenhada) como uma aventura de ficção científica por Neal Adams, gerando um bafafá daqueles, ó!
Se bem que até dá para entender a postura de Wolfman e Wein nesse caso dos Campeões. Afinal, nos seventies, a Marvel estava em franca expansão, conquistando gordas fatias do mercado, consolidando-se como a editora top no segmento de quadrinhos, e uma das “modas” era lançar gibis de supergrupos (Defensores, Invasores, Novos X-Men). Eles podem ter raciocinado que dois dos menos badalados mutantes não teriam pique para segurar um título. Além disso, a dupla Lanterna Verde/Arqueiro Verde já havia provado dessa fonte, digamos, Jack “Pé na Estrada” Kerouac, capice, intrepid one?
Não é legal chorar sobre o leite derramado, ainda mais quando o tempo já se encarregou de apagar os vestígios da sujeira. Entretanto, Isabella teria ou não sofrido preconceito religioso por parte do editor “abelhudo”? Já esse editor, se ofendeu por que era um cristão – e não queria envolver Jesus numa história dos diabos –, ou, exatamente por não ser cristão é que tomou tal decisão? E ainda: teria Isabella, o direito de converter ao cristianismo um personagem que não foi criado por ele (o criador do Motoqueiro é Gary Friedrich)?
Preconceito? Hipocrisia? Quem se arrisca?
Hmm... Quer saber? Nessas, quem se danou mesmo foi Johnny Blaze...
© Copyright Roberto Guedes
Criou ou escreveu títulos bem conhecidos, entre eles Os Campeões, Capitão América, Luke Cage, Motoqueiro Fantasma e diversas HQs para os magazines de horror da Marvel. Boa parte desse material foi republicada no Brasil, em revistas das editoras Bloch e Abril. Ele também criou o primeiro super-herói negro de maior relevância para a DC Comics: Jefferson Pierce, o Raio Negro. Quem acompanhava os formatinhos da EBAL irá se lembrar dele (e quem não viu, corra logo pro sebo mais próximo de sua casa).
Ao estudar a carreira de Isabella, e também durante esse breve bate-papo, pude perceber que temos algumas opiniões em comum. Uma delas, diz respeito ao estranho arco de histórias do Motoqueiro Fantasma em que o herói do crânio flamejante é socorrido por alguém que deveria ser Jesus Cristo, durante uma batalha contra Satã.
Qual não foi minha surpresa, ao constatar, tempos depois, que essa HQ sofreu forte imposição de um certo editor, sendo alterada e reescrita pelo próprio à revelia de Isabella. Este não diz quem é o tal editor, mas comentou que no roteiro original, Johnny Blaze tornava-se um cristão renascido, após aceitar Jesus como seu único e soberano salvador. Quanto ao príncipe das trevas... bem, ele voltava com o rabo entre as pernas pras profundezas do inferno. Mas nada disso aconteceu na versão publicada.
“Considero o que ele fez, um dos três maiores atos de arrogância que já vi um editor cometer!”, indignou-se Isabella. Olhando nos créditos, constata-se que, na ocasião, o editor era Marv Wolfman, não implicando, todavia, que a decisão tenha partido dele. Tampouco não sei dizer quais seriam os outros dois atos arrogantes, mas se pouco preconceito é bobagem, Isabella veria mais uma de suas idéias sofrer outro abuso e deturpação de princípios.
Fiquei a par disso, ao lhe perguntar se a concepção de um grupo de heróis tão esdrúxulo quanto os Campeões teria sido mesmo dele, e o roteirista me garantiu que não: “Deus te abençoe, meu amigo! Meu conceito original para os Campeões da Marvel era o de dois amigos viajantes: Homem de Gelo e Anjo. Eu achava – e ainda acho – que uma dupla formada por um sujeito classe-média e um garoto rico, ao estilo do seriado televisivo Route 66, proporcionaria situações divertidas. Mas os editores Len Wein e Marv Wolfman queriam um grupo de heróis mais tradicional e impuseram várias regras absurdas, como a de incluir toda uma equipe restante. Definitivamente, eu não compartilho do mesmo carinho dos fãs por essa série.”
Os leitores veteranos vão lembrar que a série Os Campeões foi parcialmente republicada no Brasil a partir de 1979, nas páginas de Heróis da TV. Uma equipe formada inicialmente por Motoqueiro Fantasma, Anjo, Homem de Gelo, Viúva Negra e Hércules, totalmente sem química e nenhuma motivação real que justificasse sua união. A série durou apenas 17 números, mas como muita coisa vira “cult” sem uma aparente explicação, ainda hoje os leitores lembram com carinho de suas aventuras. Por aqui, os editores brasucas pularam boa parte das edições – aquelas desenhadas por Don Heck e Bob Hall, por exemplo –, concentrando-se nas aventuras com arte de John Byrne, então, um iniciante pra lá de promissor.
Admito que fiquei admirado (ou nem tanto, já que hoje sei muito bem como as coisas por vezes se desenrolam nos corredores das redações), de como Wein e Wolfman podem ter sido arbitrários. Justo eles, que sofreram um bocado de perseguição em seus primeiros dias no staff da DC por causa do discurso racial que imprimiram em “A batalha de Jericó” – HQ da Turma Titã brecada na porta da gráfica por Carmine Infantino, para, em seguida, ser parcialmente reescrita (e redesenhada) como uma aventura de ficção científica por Neal Adams, gerando um bafafá daqueles, ó!
Se bem que até dá para entender a postura de Wolfman e Wein nesse caso dos Campeões. Afinal, nos seventies, a Marvel estava em franca expansão, conquistando gordas fatias do mercado, consolidando-se como a editora top no segmento de quadrinhos, e uma das “modas” era lançar gibis de supergrupos (Defensores, Invasores, Novos X-Men). Eles podem ter raciocinado que dois dos menos badalados mutantes não teriam pique para segurar um título. Além disso, a dupla Lanterna Verde/Arqueiro Verde já havia provado dessa fonte, digamos, Jack “Pé na Estrada” Kerouac, capice, intrepid one?
Não é legal chorar sobre o leite derramado, ainda mais quando o tempo já se encarregou de apagar os vestígios da sujeira. Entretanto, Isabella teria ou não sofrido preconceito religioso por parte do editor “abelhudo”? Já esse editor, se ofendeu por que era um cristão – e não queria envolver Jesus numa história dos diabos –, ou, exatamente por não ser cristão é que tomou tal decisão? E ainda: teria Isabella, o direito de converter ao cristianismo um personagem que não foi criado por ele (o criador do Motoqueiro é Gary Friedrich)?
Preconceito? Hipocrisia? Quem se arrisca?
Hmm... Quer saber? Nessas, quem se danou mesmo foi Johnny Blaze...
© Copyright Roberto Guedes
Comentários
Guedão, adoro suas matérias nota 10, principalmente o título delas! hahaha
Rogério
Carlos
Tomara que esse editor pelo menos tenha excluído o nome de Isabella dos créditos.
Dario
Pelas informações que eu tenho o "o editor abelhudo" foi ninguem mais ninguém menos que Jim Shooter, o famoso "Todo-Poderoso" da Marvel na segunda metade dos anos setenta e na primeira metade dos anos oitenta. Detalhes sobre isso podem ser obtidas no link abaixo.
http://goodcomics.comicbookresources.com/2007/06/07/comic-book-urban-legends-revealed-106/
Talvez Shooter tenha vetado a participação efetiva de "Cristo" nas aventuras do Motoqueiro por ser ele ateu ou agnóstico; talvez ele tenha entendido que mostrar um personagem assumidamente devoto e praticante de uma fé seria uma forma de proselitismo religioso, o que supostamente não "pegaria bem" segundo a cabeça dos editores na época.
Afinal de contas, é sempre bom lembrarmos que no campo da religiosidade os heróis sempre foram retratados de uma forma um tanto quanto indefinida e genérica, e só mesmo no final dos anos setenta apareceram os primeiros super-seres com religiosidade mais explícita, como por exemplo a Kitty Pride, a primeira super-heroína assumidamente judia dos comics americanos. Ou o Noturno, que por obra e graça de Chris Claremont virou católico fervoroso (apesar do Dave Cockrum odiar isso!). Mas isso tudo é especulação minha. Existe por aí na internet uma relação com a religiosidade dos super-heróis, e caso eu a encontre eu te enviarei. Um abraço, meu caro!
Essa informação do comic book resources carece de mais observação, e por um simples motivo: em 1976, quando Ghost Rider 18 e 19 foram lançadas, Shooter ainda escrevia Legião dos Super-Heróis pra DC Comics. Ele só iria pra Marvel no segundo semestre daquele ano. E sua primeira participação no título ocorreu na edição 21, de dezembro -como COLORISTA (isso mesmo).
Já Marv Wolfman, editou a revista do nº 14 até o nº 20. Ou seja, foi o cara que editou essas HQs de Isabella. Além disso, ele interligou os acontecimentos do nº 19 com Daredevil nº 138, outro título que ele escrevia e editava, além de escrever sozinho a edição 20 do Motoqueiro. Ao que parece, neste caso, Shooter não fez o papel de diabo.
Dario, Rogério, obrigado pela presença!
Wendell, boa análise, hein?
Grande matéria. Já te falei mais de uma vez que adoro estas curiosidades de bastidores. Minha opinião é a de que o editor não quis mudar o rumo da vida o Blaze. Não acredito em preconceito, acho que a explicação é mais simples mesmo. Estes dias mesmo o Bem Grimm fez seu Bar Mitzva em Universo Marvel. Aliás nesta história é entregado que a origem do Coisa aconteceu 13 anos atrás (daí ele poder fazer seu bar mitzva). este tipo de informação, com datas, sempre causa tumulto na Marvel, não?
Abraço.
Andre Bufrem
José Salles
Segundo o site www.comics.org o Shooter participou da feitura de Ghost Rider #19, tanto que ele foi creditado como na seção de cartas dessa revista como scripting assist,(assistente de roteiro). No link abaixo tem a ficha completa dessa edição:
http://www.comics.org/details.lasso?id=30114
Entretanto, o que realmente reforça a culpa do Jim Shooter nessa situação foi uma entrevista que o Isabella deu para o sítio Pop Thought. Nessa entrevista o roteirista isenta completamente o Roy Thomas, Wolfman e o Wein de qualquer culpa nesse entrevero, afirmando que eles aprovaram integralmente a sua idéia original, e responsabiliza diretamente o Shooter pelas modificações na caracterização do "Amigo", mesmo ele ainda não sendo o editor-chefe da Marvel Comics na época. Segue abaixo um link para a entrevista onde o Isabella detona o Shooter e relembra a sua carreira nos quadrinhos.
http://www.popthought.com/display_column.asp?DAID=65
Quanto ao fato do Shooter nesse período estar trabalhando tanto na Marvel quanto na DC, well.... É bem capaz que ele estivesse com um pé em cada canoa mesmo! Nessa época o Len Wein vivia fazendo isso, apesar desse não ser um fato corriqueiro nos anos setenta, como é hoje. De um jeito ou de outro, essas minhas colocações não são a "verdadeira-verdadeira-absoluta-e-definitiva" sobre o assunto. A única pessoa que realmente pode confirmar quem foi o "editor abelhudo" é o Isabella, e se você conseguir extrair essa informação dele vai ser bem bacana.
Um abraço!
O que "pega" neste caso "Jesus/Ghost Rider" entretanto, é que só temos a versão de Isabella, e não a de Shooter. Perguntar de novo esses assuntos pra ele (Ghost Rider, Campeões etc) seria redundância (de questão e de respota). O ideal seria tirar a limpo com Shooter...
O fato é que nenhuma HQ da Marvel iria pra gráfica sem passar pelo editor, que no caso era Wolfman.
A última palavra era dele. Agora, se ele deixou passar um balão que contrariava o texto original do roteirista...
Ainda mais uma HQ que pedia continuação em outro título também editado, ora veja, por Wolfman (!).
Shooter não disse para Isabella que ele alterou o texto, não é?
Quem disse isso para Isabella?
Será que alguém "tirou o seu da reta"?
Olha, essas coisas acontecem com bastante freqüência nas redações (na verdade, em qualquer ambiente de trabalho).
Sei que ele fez muitos inimigos, talvez Isabella seja um deles. Wolfman com certeza era.
Uma última nota: geralmente a palavra "script" é usada para os diálogos, não necessariamente para o desenrolar da trama.
Diferente de "writer", que diz respeito ao escritor/roteirista, o sujeito que, de fato, escreveu a história - ou seja, Tony Isabella.
Abração!
A respeito dessa revista que estampa a matéria (e que reprisava HQs de Johnny Blaze da década de 70), ela tem a palavra "original" na capa porque foi lançada nos anos 90, quando a Marvel publicava histórias de um novo Motoqueiro Fantasma. Lembra dele?
Usaram, portanto, "original" apenas para fazer distinção entre os dois motoqueiros.
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André, pensei nisso, também. Mas preferi deixar o artigo com as interrogações, por falta de evidências mais conclusivas quanto às reais motivações que levaram às possíveis mudanças na história.
Flávio S.
Elcio "o nórdico"
E dá-lhe, Roberto!!! Bem legal o seu blog!!! Um abraço.
Abração!
Qual impacto daria nos quadrinhos se o Motoqueiro Fantasma "aceitasse" a Jesus Cristo? Que linha, a partir desse momento, sofreria outras HQs de super-heróis?
E os leitores, como reagiriam? A Marvel perderia algum filão do mercado ou abocanhiria um público maior?
Veja por esses aspectos.
Ah,como sempre, parabéns por sua matéria. Muito boa.
Wando Luis
Abraço!