O final da década de 1960 seria marcado pela publicação do primeiro
número de O Pasquim, idealizado por jornalistas e cartunistas importantes como
Jaguar, Ziraldo, Paulo Francis, Millôr Fernandes e Henfil, só para citar alguns. Para os mais desavisados, O Pasquim tratava-se de pura sátira;
para outros, pendendo pela esquerda, manifesto de conscientização política.
Talvez fosse um pouco disso tudo, ou quem sabe, algo mais, tipo um oásis
cultural em meio à mesmice patriarcal imposta às editoras pela famigerada
ditadura militar. Na esteira, já no comecinho da década seguinte, ocorreram as
primeiras manifestações de cartunistas como Laerte e Angeli1 na
universitária O Balão.
Os anos 1970 começaram cheios de incertezas. O atentado do grupo
terrorista Setembro Negro contra
atletas israelenses durante a Olimpíada
de Munique de 1972; a recusa de Pelé em participar da Copa da Alemanha; o impeachment do Presidente americano Richard
Nixon em meio ao escândalo que ficou conhecido como Watergate, até às mortes do jornalista Vladimir Herzog e do
metalúrgico Manuel Fiel Filho nas dependências do DOI-CODI (Destacamento de
Operações e Informações do Centro de Operações e Defesa Interna) acentuaram o
clima de fim dos tempos.
No campo das HQs, as editoras brasileiras evitavam os autores
“anárquicos” surgidos durante a Contracultura2 americana, caso de
Robert Crumb, além dos quadrinhos eróticos oriundos da Europa. Rara exceção
ocorreu com a revista Grilo, editada
pela Espaço Tempo Comunicação que, no
final das contas, teve problemas com a censura. Até mesmo algumas histórias de
super-heróis foram evitadas pela EBAL,
como a fase de Denny O’Neil e Neal Adams no título Green Lantern (o herói Lanterna
Verde) que trazia muitos questionamentos de ordem social e política.
A partir de 1973, com a Crise do Petróleo, toda a economia mundial foi
afetada, o que forçou os jovens brasileiros a se concentrarem na procura de
emprego e a ignorar as ideologias pregadas por entidades como a UNE (União
Nacional dos Estudantes), determinantes na década anterior. A canção “Eu te amo, meu Brasil” da dupla Don e
Ravel, fez estrondoso sucesso, mas foi repudiada pela intelectualidade
brasileira devido ao exacerbado ufanismo e exaltação descarada ao governo
militar – acusada, inclusive, de servir como instrumento de alienação de massa
aos poderes regentes da nação.
Nesse cenário desolador, várias editoras de menor
porte fecharam suas portas, enquanto outras preferiram cancelar sua produção
nacional e investir pesado nos chamados enlatados
– com a clara finalidade de garantir retorno financeiro. Aos poucos, o gênero
“super-herói nacional” escasseava. O que sobrou, foram apenas alguns gatos
pingados. Com a pouca variedade, imperou a baixa qualidade, assim, o gênero
ficou estigmatizado como incompatível à produção brasileira.
Numa entrevista de Edgard Guimarães a este autor,
publicada no fanzine King Komix 1 (setembro
de 1997), o editor independente opinou o seguinte: “Aquilo que você cria é
resultado de como você foi criado. Assim, sem dúvida, os super-heróis
americanos são produtos do modo de vida daquele povo. Nada impede que um
brasileiro crie super-heróis, mas o fato é que a maioria dos super-heróis
criados no Brasil são calcados no modelo americano e por isso, parecem falsos.
Um herói brasileiro tem de estar inserido na cultura brasileira e ter
características que expressem o modo de ser e sentir desse povo”.
Ao analisamos o que foi feito em termos de super-heróis
brasileiros até meados dos anos 1970, as palavras do Guimarães soam assustadoramente
corretas. Por outro lado, devemos tomar cuidado ao especificarmos o que é mesmo
“cultura brasileira” para não cairmos na armadilha do estereótipo, ou então
sermos injustos com alguém. Afinal, o Brasil é um país de dimensões
continentais, que concentra em seu território pessoas das mais diversas
origens. Com exceção daquelas antenadas
na mesma frequência das mesmerizantes novelas televisivas3, é bem
provável que os interesses e sonhos de consumo dos cidadãos brasileiros variem
de região para região, contrariando os ditames do horário nobre.
O elemento fantasia, inerente às histórias de
super-heróis, pode muito bem ser aplicado em qualquer contexto, seja ele o
sertão nordestino, a floresta amazônica ou a metrópole de São Paulo. Tudo vai
depender da habilidade de seu autor em conseguir ser convincente ou não. A
crítica deve, portanto, ser direcionada às técnicas narrativas e artísticas do
quadrinista. Se estes dois itens falharem, é óbvio que o enredo não irá segurar
o tranco. Daí criticar um autor, apenas porque o gênero escolhido em sua obra
seja algo considerado alienígena à sua formação enquanto cidadão de um país, ou
ao ambiente, propriamente dito é, no mínimo, um ato de preconceito.
Afinal, que seria da Bossa Nova – considerada por muitos, a legítima
expressão musical brasileira, se não fosse o Jazz?
Quadrinhos como Pererê (Ziraldo) e Chico Bento (Mauricio
de Sousa) carregam o regionalismo em seu bojo, porém leitores de qualquer lugar
do Brasil se identificam com os personagens, devido, em grande parte, à notória
habilidade de seus autores em universalizar suas historietas.
Por outro lado, somos tão bombardeados através de
alguns meios de comunicação com os slogans “Levar
vantagem em tudo” e “Dar um jeitinho”
que, no final das contas, achamos que todos nós brasileiros, somos realmente um bando
de espertalhões. Vestimos a carapuça da malandragem e rimos de nós mesmos. Há
quem entenda que isso seja uma qualidade a ser decantada em verso e prosa, mas
o fato é que os morros do Rio não comportam mais o malandro simpático e
boa-praça da época dos filmes da Atlântida.
Hoje, eles estão mais para traficantes de drogas e suas metralhadoras.
Atente para o que Don Rosa, o mais importante
ilustrador americano do Tio Patinhas (depois de Carl Barks, claro), disse em
entrevista ao jornalista Diego Assis da Folha
da Tarde (edição de 23 de maio de 2004),
ao ser indagado sobre o planejamento de uma nova história do Zé Carioca:
“Houve centenas de quadrinhos do Zé criados no
Brasil, mas ninguém nos EUA os conhece. Pelo pouco que vi, ele é retratado como
um vagabundo preguiçoso que passa seu tempo enganando gente rica por dinheiro
ou comida. Não acho que isso serviria à minha história”.
E concluiu: “Depois de deixar o Rio de Janeiro, o
Zé parte para o Mato Grosso. Queria evitar a Floresta Amazônica, já que é tudo
o que os americanos pensam quando se fala em Brasil. E o Brasil é muito mais do
que uma selva hostil”.
Precisávamos mesmo que um estrangeiro nos dissesse
o óbvio?
1 Esse pessoal encontraria reconhecimento
profissional nos anos 1980, em revistas como Circo e Chiclete com Banana (do
editor Toninho Mendes), e partiriam em seguida, para as tiras de jornal de
nossos principais jornais.
2 Reação dos jovens dos anos
1960, com destaque aos hippies, contra os valores da sociedade moderna e a
indústria cultural vigente, o consumismo, o preconceito racial e as guerras; ao
imprimir, a partir daí, um estilo de vida alternativo.
3 Aqui não
se tem nenhuma pretensão de dar uma conotação pejorativa, mesmo porque, na
opinião deste autor, nossa TV já produziu obras geniais como: Irmãos Coragem
(1970) – novela de Janete Clair que durou mais de um ano. A autora se inspirou
no romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. Pecado Capital (1975) – outro
grande sucesso de Clair, e primeira novela em cores das 20 horas. Consagrou
Francisco Cuoco no papel do taxista Carlão. O final da trama foi um dos mais
marcantes da história da telenovela brasileira. Estúpido Cupido (1976) –
escrita por Mário Prata, foi uma deliciosa incursão ao princípio dos anos 1960.
Ney Latorraca arrebentou como o “rebelde sem causa” Mederiquis. A deliciosa
trilha sonora nacional (que resgatou Celly Campello, entre outros intérpretes pré-Jovem
Guarda) é, até hoje, uma das melhores seleções da gravadora Som Livre.
Dancin’Days (1978) – escrita por Gilberto Braga, que se valeu da onda da Discothequè.
Lançou modismos, como as meias Lurex, usadas pela protagonista Sônia Braga. O
tema de abertura, com o refrão “Abra suas asas/ Solte suas feras/ Caia na
gandaia/ Entre nesta festa” foi composto por Nelson Mota e imortalizado pelo
grupo As Frenéticas.
* Meteoro sobrevoando o Cristo - Arte de JJ Marreiro.
© Copyright Roberto Guedes. Todos os direitos
reservados.
Trecho extraído do livro A Saga dos Super-Heróis Brasileiros (Opera Graphica, 2005), adaptado para o Manifesto
pelo próprio autor.
Comentários
Ótimo texto, como sempre!
Acho que antes de tudo o super-herói deve se comportar como um herói, independente da região do planeta em que habite. As particularidades regionais são apenas um tempero que o diferenciara de outros conferindo-lhe graça e personalidade. Outros heróis brasileiros que gosto são Capitão 7, pelo pioneirismo (adorei seu regresso no Almanaque Meteoro 1), a Mulher-Estupenda do Marreiro (o mesmo que desenhou essa arte linda do Meteoro no Cristo), por trabalhar elementos retro com propriedade, e a Velta, que vai por uma linha mais erótica, mas que não deixa de ser super também. Acho que outros como Raio Negro, Cometa e Judoka têm potencial, mas não são ou não foram devidamente trabalhados no quesito caracterização. Faltou no meu entendimento um editor com visão mais universal, como um certo editor meteórico que conheço............
Abraço!
Reginaldo
"Don Rosa, o mais importante ilustrador americano do Tio Patinhas (depois de Carl Barks, claro)"
eheheheheheheh!Uma grande verdade!
No mais, adorei o artigo!
Parabéns Guedão!
Cesar Brito
A título de contribuição, uma HQ de "herói" brasileiro que me surpreendeu foi ZELADORES.
Nathan Cordes e Anderson Almeida usaram vários elementos típicos da nossa cultura, como Caroxinha, Cuca e Zé Pilintra.
Abraço, Guedes!
Olá.
Maravilhoso, o seu texto
Gostei.
Abraços.